10 TEXTOS SOBRE O GOLPE

J.P. Cuenca
26 min readMay 11, 2016

O procedimento do terror (FSP - 12/04/2016)

Acaba de sair pela editora argentina Eterna Cadência, “Las tres vanguardias. Saer, Puig, Walsh”. O livro traz a transcrição das conferências que Ricardo Piglia deu na Universidade de Buenos Aires em 1990. Ele usa os três escritores como pedra de toque para discutir o romance literário contemporâneo e sua relação com o leitor, a política –e o Estado.

O jornal “La Nacion” adiantou um trecho do livro, justamente o que trata das ideias de Piglia sobre o Estado como construtor de ficções. Se um dos níveis fundamentais da relação social é a narração –estamos todos tecendo narrativas o tempo inteiro, é uma obrigação social–, o escritor chama de “narrativa pública” ao relato coletivo cristalizado. E propõe a hipótese de que o Estado sempre irá engendrar uma ficção tentando concentrar essa narrativa.

No Brasil de 2016, tal ficção do Estado é dramaticamente contraposta a outras, traçadas por agentes que querem “ser” Estado no momento seguinte. O Estado seria, portanto, o sol em torno do qual orbita essa trama aparentemente infindável de narrativas contraditórias.

Piglia cita Paul Valéry, na “Política do espírito”: “A era da ordem é o império da ficção. Nenhum poder é capaz de sustentar-se apenas com a opressão do corpo a corpo. São necessárias forças fictícias.” E junta ao caldo as ideias da “Teoria do romance” onde Lukáks define o gênero literário como a unidade impossível entre dois mundos irreconciliáveis –o possível e o utópico, o real e o ilusório, a vida e o sentido.

O herói do romance, portanto, seria o sujeito insatisfeito que está no meio, tentando passar de um lado ao outro e sempre fracassando.

O HERÓI DO ESTADO

Para Piglia, o Estado faz o mesmo que o romance ao trabalhar a relação entre o ideal e a realidade, mas de um modo inverso. O herói do Estado é aquele que diz: precisamos baixar nossas expectativas ideais por causa do peso do real, há limites, “restrições orçamentárias”, “a bancada ruralista” etc.

Piglia usa uma frase que Perón teria roubado de Aristóteles para justificar um aumento de preços em 1948 como paradigma dessa tensão entre o ideal e o real: “a única verdade é a realidade”. Eu poderia oferecer exemplo menos tautológico, a “Carta aos brasileiros” de Lula, em 2002.

Piglia nos escreve desde a Argentina no início dos anos 1990, quando Menem centralizava essas narrativas de forma folhetinesca, então com o suporte total do grupo Clarín. “Menem é o herói trágico destinado a ser liquidado pela descrição do que ele mesmo propõe como futuro. O herói de uma narrativa cujo final trará uma sociedade na qual um sujeito como Menem não poderá ter lugar.”

No entanto, o herói do romance de ficção não é como Perón, Lula ou Menem. É bem o contrário, já que precisa encontrar um ideal que dê sentido ao real. Muitas vezes o ideal só vale para um Quixote, ainda que a seus leitores desmascare a ficção do Estado –e também a de quem se costuma se contrapor a ele.

O que interessa a Piglia nessa parte do ensaio é a tensão entre essa “trama de narrativas que circulam” no campo do imaginário coletivo e as formas literárias assumidas pelo romance. Para ele, o gênero seria, desde sua origem, uma resposta formal a demandas propostas pela sociedade.

E o que me interessa quando abro o jornal na tarde do discurso “vazado” de Michel Temer e leio que, no mesmo dia em que um homem ateou fogo a si mesmo diante do Palácio do Planalto, um grupo de presidiários ergueu ummuro de dois metros de altura dividindo a Esplanada dos Ministérios em Brasília Oriental (vermelhos) e Ocidental (amarelos), é outra hipótese do escritor argentino: “Numa sociedade é muito importante o que ainda não é, o que não existe, aquilo do que se fala –seja porque não se quer que exista ou porque se quer. Esse lugar é o lugar da utopia, mas também o do procedimento do terror”.

Essa tensão entre o discurso do possível e seu antagônico, proposto como utopia, define o romance de ficção. E marca também o discurso que alimenta o temor ao futuro, construído sobre a ameaça de que ele pode ser igual ao passado –ou muito diferente dele, a depender do lado do muro.

Crise de narrativa (FSP — 01/04/2016)

Entre as vertiginosas crises que vivemos, talvez a maior seja de ordem narrativa. O que a literatura de ficção e o cinema apresentam como questão estética, o Brasil hoje experimenta na carne.

Quando a imprensa troca jornalismo por engajamento político e juízes oferecem comícios, parece não existir farol fora do proselitismo radioativo que contaminou nossos ares. Viramos caricaturas num romance picaresco, vivendo uma cornucópia de tretas, perdidos como Cândido sem reconhecer seu Pangloss em trapos –e aqui há muitos, a gosto do freguês.

Entre Voltaire, a Coração Valente e o Patinho da Fiesp mudaram as formas épicas, mas seguimos com o mesmo pendor ao fanatismo cego e ignorante. Nesta luta de crendices obscuras, perdemos algo mais que a simples objetividade.

Como diz Adorno em seu ensaio sobre a “Posição do narrador no romance contemporâneo”: “o subjetivismo não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la”. No capítulo “Brasil, março de 2016”, as fronteiras entre relato e mistificação foram completamente diluídas.

Aqui, a crise de representação da arte pós-moderna se entrelaça com a crise de representatividade política –a entropia onde “vale tudo”. E a filosófica crise do real e da verdade objetiva (Bauman) confunde-se com nosso pavor secreto de uma crise do Real –ele, o Real moeda, cuja estabilidade, aliás, surge de uma abstração numérica e de uma sigla sem significado.

TERRITÓRIO LIMÍTROFE

É nesse território limítrofe que nossos muitos narradores tentam, a todo o momento, manipular e cooptar leitores –que logo também farão parte do mesmo exército de narradores não confiáveis. Em primeira, em segunda e, a depender do veículo, em terceira pessoa, por trás de uma bancada de TV.

Tal romance grotesco, realidade baseada em fatos reais, talvez seja divertido de ler em algumas décadas, mas é nada agradável para nós, seus figurantes.

A inesgotável disputa entre suas versões nos paralisa num labirinto de ambiguidades. Não confiamos no que lemos, ouvimos, vemos e, principalmente, não confiamos mais uns nos outros.

Somos Brutos e Cássio esfaqueando Júlio César e, num susto, acordamos para perceber que somos Júlio César ensanguentado nas escadarias do Senado –onde, num último estertor, nos reconhecemos no olhar de nossos algozes.

O boato é regra, retórica virou sinônimo de engano –o relato deixa de ser “réplica da vida, caso a vida fosse feita só de palavras” (Piglia), “os fatos já nos chegam acompanhados de explicações” (Benjamin) e eu mesmo, neste momento, estou tentando bater a sua carteira. Ou passar a mão na sua bunda.

“Queria que tudo explodisse e todos virassem bichos”, me escreve a amiga com o coração apertado. Eu também.

Acontece tudo, nada acontece, “mas daqui do alto do Copan vai dar pra ver bonito”, penso, mas não respondo.

Os Bestializados (FSP — 29/03/2016)

No dia 15 de novembro de 1889, Aristides Lobo escreveu sobre o golpe militar frio que ficou conhecido como a Proclamação da República: “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se.”

O dramaturgo Arthur Azevedo também viu o cortejo militar: “Os cariocas olhavam uns para os outros pasmados, interrogando-se com os olhos, sem dizer palavra. Na Rua 1º de março a passeata desfilou em silêncio, com Deodoro tentando manter-se ereto na sela e apresentando sintomas de recrudescimento de sua doença cardíaca.”

O que o povo assistiu foi uma parada militar com algumas centenas de soldados e a tomada de poder por um distraído marechal com dispnéia. Deodoro da Fonseca, cuja intenção em por-se à frente da quartelada era inicialmente derrubar o Ministério do Visconde de Ouro Preto, gritou ao entrar no prédio do governo no mesmo dia 15 que hoje celebramos: “Viva sua Majestade, o Imperador!”

Fonseca acabou derrubando algo mais que o gabinete, numa trama confusa, cheia de boatos, rixas pessoais, lances de improviso e até ciúmes — Baronesa de Triunfo, onde estaríamos sem ela? Talvez o lacerdismo tenha sido inventado ali, nas intrigas palacianas que alimentaram a queda do Império, entre maçons, padres, editores de jornal (depois seriam censurados), milicos e escravocratas frustrados.

No dia mesmo da “proclamação”, Aristides Lobo escreveu: “Mas voltemos ao fato da ação ou do papel governamental. Estamos em presença de um esboço, rude, incompleto, completamente amorfo.” Lobo foi Ministro do Interior do governo provisório de Marechal Deodoro por apenas dois meses. Rompeu com uma república investida de poderes ditatoriais, especialmente preocupada em manter os privilégios dos oligarcas brasileiros.

O “esboço rude e incompleto” duraria mais tempo do que poderia imaginar: nossa república (do latim, res publica: coisa pública) jamais teria o bem comum sobreposto ao privado.

Difícil não pensar na população e nas ruas do Rio de Janeiro e de Brasília, já prevista no artigo 3º da constituição de 1891. Os valores ligados à ascensão da república moderna — igualdade entre cidadãos, justiça para todos, liberdades civis, capitalismo — jamais foram encontrados na nossa primeira capital republicana e muito menos na segunda. Ambas vitrines socialmente hierarquizadas, a primeira envenenada por raízes escravocratas, a segunda nascida sob o signo da burocracia estatal.

Passadas doze décadas, mantêm-se o fosso entre república e cidadania no Brasil. A população deseducada, os acertos do poder fora de seu alcance e compreensão. Tirando breves solavancos, a República Velha e seu apreço aos donos da terra e do dinheiro parecem mais vivos que nunca. Nas estranhas deste e de qualquer governo viável estará ainda o PMDB e seu coronelismo eletrônico. (Favor me acordar caso aconteça algo diferente disso nos próximos meses ou anos.)

No entanto, há de se admitir grande diferença em relação aos brasileiros calados do final do século XIX: hoje temos a impressão de que podemos mudar alguma coisa. Nós, os bestializados, há tempos não assistimos mais de fora as paradas — militares ou não.

Hoje eu vou nadar (FSP — 25/03/2016)

Tenho fobia a hospitais. Lugar onde entramos sem saber se vamos sair. Quando visito o amigo internado –ou até um novo habitante deste mundo, na ala da maternidade –tenho uma fantasia recorrente que começa com um mal súbito, um tropeção, vertigem, dificuldade para respirar, talvez uma fisgada do lado errado do peito.

Logo vejo um grupo de homens vestindo branco e mulheres de rabo-de-cavalo com máscaras cirúrgicas debruçadas sobre mim. Há certa confusão de movimentos e intenções, cujo centro deveria ser eu, mas já tratam de mim como se não estivesse mais lá. A identificação colada na minha camisa é trocada por uma pulseira de paciente.

Observo as lâmpadas fluorescentes do teto e elas começam a deslizar para trás, como faixas brancas pintadas numa estrada -percebo que estou deitado numa cama sobre rodas. Ao longo do labirinto de corredores iluminados comum a todos os hospitais, deixo para trás a propriedade sobre o meu destino. Ou a ilusão desse controle.

Indiferente a estas xaropadas, a maca atravessará uma sequência de portas duplas (há algo aqui da estrambólica abertura do seriado “Agente 86”) até a sala de tratamento intensivo, outro umbral de onde muitos só conhecerão a porta de entrada. Sob os blips eletrônicos de aparelhos espetados nos corpos semi-vivos que visitam, os afortunados que estão de pé por ali sentem um incômodo difuso. Como diz o pássaro nos Quartetos de Eliot: a espécie humana não pode suportar muita realidade. Com a óbvia exceção de enfermeiros e alguns poucos poetas.

Felizmente, o amigo que visitei sábado passado saiu da UTI no dia seguinte. O país é que talvez ainda esteja por lá.

“O maior fanatismo surge quando você perde a fé”, assim o Paroni resumiu a conversa que tivemos na sala de internação, ao lado de alguns senhores que já não estão mais neste mundo. Em março de 2016, o que une o Brasil é justificada descrença na política tradicional que traduz-se em espasmos histéricos entre o Sebastianismo e a Escatologia -escrevi pensando no termo bíblico, relacionado ao apocalipse, mas compreendo quem quiser incluir a acepção coprológica do termo.

Eu misturaria as duas imagens, inclusive: um Dom Sebastião todo cagado, com merda escorrendo da cabeça aos pés. Na verdade dois, marchando em dias diferentes. Ambos sobre o mesmo terreno estéril e baldio, sem futuro, arrastando multidões de sísifos sem qualquer heroicidade, usando antolhos com certo ar infantil, erguendo bonequinhos e bandeirinhas.

Há um trecho muito famoso do diário de Kafka –só Vila-Matas já deve tê-lo citado trinta vezes –em que o escritor tcheco meursaultianamente escreve, no dia 2 de agosto de 1914: “Hoje, a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde, fui nadar.”

Acho que hoje eu vou nadar.

Divisor de águas (FSP — 15/03/2016)

Uma fratura profunda começou a abrir no corpo psicossocial brasileiro desde os protestos de junho de 2013 — liberação de energia ainda não totalmente compreendida e muito menos capitalizada. É cedo demais para precisar a extensão política do sismo, mas como o foco desta tentativa será o indivíduo, me arrisco a abrir a tampa do liquidificador ligado.

A falha não começa com uma ruptura total, talvez um pequeno ponto trincado num vidro que aos poucos vai se abrindo em teias riscadas até enxergarmos nosso reflexo numa vitrine craquelada. Estamos surfando — ou sendo engolidos — por este fractal desde então. As rachaduras não pararam de crescer.

A imagem não é apenas metáfora: vitrines quebradas foram uma das grandes protagonistas da cena nacional desde então. Através de uma cobertura jornalística disposta, junto ao governo federal, estadual e a PM, a criminalizar a maioria dos protestos, era mais fácil encontrá-las, em destaque e contabilizadas na imprensa, que o números de feridos ou mesmo imagens dos seres humanos vandalizados pela polícia. Desde então, o comportamento das tropas variou conforme a antipatia da turba aos oligarcas –fantasiados sob governos supostamente de esquerda ou de direita, tanto faz, mandam bater igual. Aprendemos: marchar ao lado da Fiesp (selfie com o caveirão israelense) é diferente que marchar contra a Fifa, máfias de ônibus ou Belo Monte (gás, tiro e cacetada).

No dia seguinte, manifestantes em casa ou no hospital, e a cena recorrente de tapumes a cobrir fachadas destruídas — antes das feridas cicatrizadas, os bancos terão vidros novos, como se nada houvesse acontecido. Mas nossa imagem fragmentada não terá a mesma chance de reconstrução. Somos um quebra-cabeça que não monta mais.

Aqui sugiro um corte generacional: o impacto desse tremor de terra será mais profundo para quem nasceu nas décadas de 70 e 80. Os atos dessa geração nos últimos três anos irão definir seus caminhos para os próximos trinta.

Como se de junho de 2013 até hoje o tempo tivesse sido esticado, corda de um arco que nos impulsionará como flecha até os anos 2040, em direção determinada pelas nossas últimas escolhas. A forma como negociamos a tensão entre convicções pessoais e relações laborais e afetivas — até onde transigimos ou traçamos fronteiras — irá definir nossas carreiras, amizades e casamentos nas próximas décadas. E também como a história se lembrará de nós.

Como amo a assertividade patafísica da astrologia –e acredito plenamente nela em dias ímpares– recorro aos astros, que por sorte sustentam com perfeição minha nada modesta teoria. A sequência transformadora de eclipses desde o segundo semestre de 2013 foi um fenômeno sem precedentes que envolveu quadratura bombástica entre Urano e Plutão, dois destruidores revolucionários criativos, coincidindo com o trânsito de Saturno em Escorpião, expondo a sujeira, rompendo estruturas. O último eclipse dessa série será agora no dia 23 de março. Em 30 anos, Saturno irá retornar à posição onde estava em 2013, fechando um ciclo de amadurecimento e consolidação. (Obrigado, Maína Mello).

O momento merece de todos nós senso histórico. Vale a tentativa de saltar para fora da foto, respirar fundo, e se olhar: você ainda estará nela em 2043. Ou 2046. É uma questão política, mas não é só política –ou é a política em tudo. O próprio lugar ocupado por cada um de nós no mundo está em questão. E o silêncio não parece ser alternativa ao bombardeio, quem cala hoje tem a mão suja, será lembrado por isso. Acabou o conforto: o tempo esticado, em cordas graves prestes a rebentar. Suas respostas de agora não poderão ser rasuradas no futuro. Cada uma delas, um caminho. Não tem volta.

Deixem o Dr. Bacamarte em paz (FSP - 05/04/2016)

Em tempos de conjeturas e invenções, o homem costuma voltar-se à história e usar os nomes de seus protagonistas em vão. É o que tem acontecido com o Dr. Simão Bacamarte, primeiro médico brasileiro a dedicar-se às moléstias cerebrais nas últimas décadas do século 18. Ao contrário do boato que corre, e boato duvidoso, o Dr. Bacamarte não virou juiz de direito e muito menos herói de ninguém. Hipócrates forrado de Catão, o alienista jamais viu-se seduzido pela frivolidade de um fórum de justiça e muito menos pela vaidade da toga. Não era um cientista dado à apetites vulgares.

Aos que conhecem a acidentada história deste pioneiro, cujo resumo aqui tentarei esboçar, peço que pulem aos últimos parágrafos.

Segundo o cronista mais célebre da vila de Itaguaí e das demais povoações da colônia, o Dr. Bacamarte foi o fundador do primeiro hospício da cidade, a Casa Verde. Tamanha era a quantidade de deserdados do espírito nas ruas, que apenas quatro meses após sua inauguração a casa precisou de novas galerias. Aos poucos, o alienista, como ficou conhecido, lançou terror à alma do povo. Conforme a autoridade decidia pela internação de cidadãos tidos como perfeitamente saudáveis, crescia a agitação popular. “A Casa Verde é um cárcere privado”, acusavam médicos sem clínica.

A revolta dos Canjicas, liderada pelo barbeiro Porfírio Neves, aliciou parte da cavalaria do exército, derrubou a Câmara e prendeu seus vereadores. O governo revolucionário logo caiu e outro conspirador assumiu o poder, João Pina, também barbeiro de profissão. Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista, tomado de furor jacobino, exigiu a entrega dos rebeldes, de vereadores da oposição, do presidente da Câmara e de uns quantos outros que declarou mentecaptos. No máximo de seu poder, mandou também recolher aCasa Verde seu grande aliado, o boticário Crispim Soares, e a própria mulher, D. Evarista.

Sucediam-se as versões populares para os desmandos de uns e de outros. Naquele tempo, Itaguaí não dispunha de imprensa e tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara e da matriz, ou por meio de matraca. (Contratava-se um homem para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam: um empreendimento imobiliário, um donativo eclesiástico, a abertura de um comércio etc.)

A crise de Itaguaí pareceu terminar quando, tendo já aposentado quatro quintos da população na Casa Verde, o alienista mandou libertar seus pacientes através de surpreendente ofício expedido à Câmara. Como a maioria da população estava internada, o que deveria se admitir como normal e exemplar era o desequilíbrio mental. E como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto, concluiu o Dr. Bacamarte.

Autorizado o alienista a recolher na Casa Verde os que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais, ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas. O maior dos médicos do Brasil tratava-os segundo suas enfermidades. Fez-se uma galeria de tolerantes, outra de honestos, outra de sinceros etc. Prescrevia para cada um a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto. Curava a modéstia com diplomas ou distinções honoríficas, por exemplo. Outros, como poetas, curou mandando correr matraca, espalhando inverdades.

ESVAZIOU-SE A CASA VERDE

Pouco tempo depois, esvaziou-se a Casa Verde: todos de volta à normalidade, menos o doutor.

Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Assim, fechou-se no hospício e entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Seu maior biógrafo conta que morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada.

Outros cronistas relatam que o alienista sobreviveu a seus contemporâneos. Ao contrário do que dizem os vigários maldosos, nunca foi ao sul do país. Depois de longo repouso, teria saído da Casa Verde em segredo, apenas à cata de outros como ele. Ao longo dos séculos, não os encontrou.

Raro espírito, preocupava-se cada vez mais em manter a lucidez. Se a Câmara de Itaguaí pouco mudou de mãos desde o Império, o Dr. Bacamarte teria visto a matraca evoluir para o rádio e a TV, os cartazes para jornais e revistas, o nascimento da comunicação de massa e uma soma de tudo isso no fenômeno extraordinário da internet. Em algum ponto de sua travessia pelo tempo, já apartado de sua rica biblioteca, o alienista distraiu-se com manchetes (há quem insinue que foi um meme ou corrente de WhatsApp) e nunca mais achou o caminho de volta para Itajaí.

A Casa Verde segue completamente vazia.

Paulo Francis no pé da Lava Jato (FSP - 22/03/2016)

“Toda época é ruim, quando vivemos algum tempo nela.”

Tenho pensado muito sobre Paulo Francis e sobre essa frase, baseada em ideia do historiador e filósofo norte-americano George Boas. Ela abre uma de suas derradeiras colunas para esta Folha, “Monólogo Interior”, texto de outubro de 1990, republicado na antologia “Diário da Corte” (Três Estrelas, 2012).

Francis é personagem fundamental para minha formação. Enquanto vivo, acompanhei principalmente sua fase pós-Folha, anos 90, em “O Globo”. E via suas participações anárquicas e delirantes na TV. Ao contrário dos jovens que com quem convivia na época, eu o adorava. Ainda hoje, vejo seus vídeos no YouTube, leio seus textos. Tenho saudades de um homem que nunca conheci, mesmo sempre discutindo com ele.

Eu o via como um herói da cultura. Em tempos pré-internet, cronista-mapa do século 20 a enviar sinais de uma Nova York mitológica. Não me apresentou apenas escritores e cineastas. Junto a minha avó, que soltava fitas cassete de “Madame Butterfly” ou “Tosca” no último volume e narrava seus enredos quando eu tinha cinco anos, uma criança ainda sem traumas aparentes, foi Francis quem me ensinou a gostar de ópera. E jazz. Meu rascunho de melómano pré-adolescente a ouvir concertos e frequentar a Sala Cecília Meireles no centro do Rio –imaginando o Lincoln Center em delírios de cosmopolitismo na periferia do mundo– foi traçado por ele.

É também muito por causa de Francis que sou um homem de “esquerdas”, como ele mesmo dizia –hoje, estou à esquerda da esquerda, aliás. Bons articulistas nos ensinam por contraste e oposição. Tinha prazer em discordar dele, na maior parte das vezes com humor, até quando era agressivo, preconceituoso ou simplesmente detestável. Ainda era possível. Mudaram os tempos, mudamos nós e, principalmente, os articulistas reacionários. Francis hoje engoliria algumas aberrações hidrófobas que se creem filhotes dele –ou talvez as visse apenas como “jecas” primitivos patrocinados pelo belzebu.

Na mesma coluna de 1990 que uso para abrir o texto, ele cita Yeats: “Os melhores não têm convicção alguma, enquanto os piores estão cheios de intensidade passional”. E continua: “É fácil reconhecer nosso mundo nessas linhas de Yeats”.

Morreu de um ataque cardíaco, aos 66 anos, em 1997, sob a ameaça de um processo de US$ 100 milhões que Joel Rennó, presidente da Petrobras em anos FHC, movia contra ele na Justiça americana. A metralhadora de Francis soltou, no programa de TV “Manhattan Connection”, que a diretoria da empresa era corrupta e tinha dinheiro guardado na Suíça.

Elio Gaspari escreveu nesta Folha no dia seguinte a sua morte : “A gestão estimulada por FFHH caducou na manhã de ontem. Paulo Francis está morto. O que o doutor Rennó precisa saber (e sabe-se lá o que ele sabe) é que conseguiu ferir o seu adversário. Seu processo ocupou um espaço surpreendente na alma de Francis.”

Quase 20 anos depois da sua morte, o tema da corrupção durante a presidência de Joel Rennó (1992–1999) na Petrobras (ou “Petrojoel”, como o mesmo Gaspari batizou em 2001 está na delação do senador Delcídio do Amaral, divulgada integralmente semana passada.

Talvez tenha sido a parte da delação menos repercutida pela imprensa. A história é manjada, mas reproduzo: “Delcídio do Amaral tem conhecimento de ilícitos perpetrados entre a Marítima, de German Erfromovitch, e a Petrobras, quando era presidida por Joel Rennó, envolvendo o fornecimento de sondas e plataformas de petróleo. […] Delcídio do Amaral tem conhecimento que esses sucessivos atrasos e sobre-preços custaram milhões de reais para a Petrobras e consequentemente para o País. […] Joel Rennó, à época, gozava de apoio político que nenhum presidente da companhia teve ao longo da sua história, o que se atesta pela sua longevidade a frente da Petrobras.”

Ao ler a delação, vejo que o sobrepreço apontado por Delcídio na negociata de apenas uma plataforma é de US$ 100 milhões, o mesmo valor da indenização por calúnia que infernizou o escritor.

Em 1997, ano em que Paulo Francis morreu, Paulo Roberto Costa, funcionário de carreira da Petrobras que depois tornaria-se o primeiro delator de peso da Lava Lato, ganhou a diretoria da Gaspetro. Em 2004, já nos anos Lula, chegou a diretor de abastecimento. Há outros nomes envolvidos no esquema desde 1997, como Pedro Barusco, que transitou entre os dois governos. Os escândalos na estatal atravessaram os mandatos de ambos os ex-presidentes, com a evidente anuência dos dois.

Só falta Lula confessar. FHC já o fez. Um ano antes da morte de Francis, em 1996, segundo seu livro “Diários da Presidência — volume 1” (Companhia das Letras, 2015), ele já tinha conhecimento de um enorme esquema de corrupção na estatal mantido por diretores sob o controle de Rennó: “Quem manobra tudo e manda mesmo é o Orlando Galvão Filho, embora Joel Rennó tenha autoridade sobre Orlando Galvão”, teria dito a ele o dono da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Benjamin Steinbruch.

Na época anotou: “Acho que é preciso intervir na Petrobras”. Um ano depois da morte de Francis, em 1998, efetivamente o fez: assinou decreto eximindo a estatal de se submeter à Lei das Licitações. Segundo o douto Eduardo Cunha foi o que “abriu a porteira”. (Imagino agora o que Francis diria sobre Vossa Excrescência.)

No documentário “Caro Francis” (Nelson Hoineff, 2010), o ex-presidente conta que pediu para que Rennó retirasse a ação da Justiça. Quando perguntado sobre sua reação, FHC pergunta ao entrevistador: “Acho que ele não retirou a ação. Não sei. (longa pausa) Ele retirou a ação?” Não retirou. Francis, que teve sua fase de entusiasmo por FHC, de quem chegou a se dizer amigo pessoal, morreu antes disso.

Mesmo que os bilhões de dólares desviados na época não pareçam suficientes, e sabemos que a conjuntura política indica cobrir apenas a roubalheira dos anos PT, o leitor dialético que fui (e ainda sou) de Paulo Francis gostaria que o tema voltasse à imprensa e ao Judiciário –nem que fosse apenas por respeito à sua memória.

Certos crimes não deveriam prescrever. Na Lava Jato há muitos, e um deles é contra um escritor brasileiro. E, bom não esquecer, contra a liberdade de expressão de um jornalista, na época contratado da TV Globo.

Março de 2016 (FSP- 18/03/2016)

16/3–21h — Youtube — Uma multidão persegue, bate e xinga um casal na Avenida Paulista. Quando a turba os encurrala num canto, um jovem de bem grita: “Veio provocar e agora vai sair chorando. Covardes!”

Ao final, os dois falam para uma repórter da rádio CBN. O homem sangrando no nariz: “Posso resumir? Estava voltando do trabalho dela, onde fui buscá-la. A gente foi entrar no Masp, onde está tendo essa manifestação. Não somos a favor da manifestação nem nada, só fomos ali pra fumar um cigarro e conversar. Aí, um dos caras gritou “Lula tem que ser preso!” na orelha dela e ela não acha que isso é certo e e falou não, disse que não”.

A moça interrompe, chorando: “E aí ele começou a me bater, velho, do nada!” O rapaz: “Aí começaram a bater nela, eu fui defender e o cara me deu uma cabeçada.” A moça continua a soluçar, revoltada, e namorado tenta acalmá-la: “Calma, são um contra 300, não dá pra fazer nada…”

Alguns comentários no Youtube: “Sente a opressão, vagabunda “, “dois maconheiros queriam sentir uma onda e conseguiram”, “Ninguém é escorraçado desse jeito por nada…” e, finalmente, “Isso sim é igualdade de gênero, justiça social, devemos dar porrada em todos os petistas sem distinção de sexo, cor e orientação sexual. Não há diálogo com petistas.”

*

16/3–23h30 — Facebook — Estudante de jornalismo, mulher: “Pra terminar essa belezinha de dia: passei pela Paulista à noite para pegar o metrô. Encontrei com a manifestação no meio do caminho. Atravessei o aglomerado de verde e amarelo em frente à Fiesp vestida também de verde e amarelo. De camisa azul, roupa escolhida pela manhã, fui confundida com manifestante. Um cara veio me entregar uma bandeirinha, gritando “Fora, Lula”. Respondi que não compactuo com golpe, sorri, não peguei e continuei andando. O cara me seguiu. Puxou meu braço, me chamou de puta e me mandou pegar a bandeira e lutar por um Brasil melhor. Peguei a bandeira. Rasguei. Repeti que não compactuo com golpe. Levei um murro na boca do estômago, uma cusparada e um “corre comunista”. Segundo o Estadão fui agredida por uma pessoa de bem”.

*

17/3–14h26 — Facebook — Jornalista de João Pessoa: “Pessoal, infelizmente, após duras críticas ao Moro e ao golpe em minha coluna na CBN, um juiz pediu cópia do áudio para abrir inquérito. A censura está começando. Preciso urgente de um contato com algum advogado de João Pessoa. Temo por arbitrariedades”.

*

16/3–20h06 — Facebook — Coisa rara, um post no meu perfil.

Escrevi no momento em que me pareceu inquestionável a existência de um aparato judicial-midiático a manipular corações e mentes com o objetivo triplo de:

1 — Cortar a cabeça das medusas corruptas apenas de um partido e entregá-las ao “povo de bem” numa bandeja.

2 — Levar a crise institucional ao limite –e isso inclui incitar a violência nas ruas.

3 — Depois de 1 e 2, salvar a pátria de uma crise para a qual tanto conspiraram, e, no processo, levar ao forno uma grande pizza para a oposição desidratada e o partidão-câncer do Brasil.

Não é de interesse de PSDB e PMDB que a Operação Lava Jato continue. Ela deve parar no PT. Pela sua atuação recente, sobram motivos para desconfiar que o juiz Moro pense o mesmo. E para que esse “acordão” funcione, pouco importa rifar nossa democracia no processo.

O texto:

“A questão agora não é estar ou não com o PT. Não é ser “fora Dilma” ou “fica Dilma”. Eu nunca votei na Dilma, por exemplo, e acho seu governo desastroso.

E daí? Essa não é a questão agora.

Já deixou de ser há meses e vocês ainda não entenderam. A questão é que o juiz Moro não é imparcial e atropela a Justiça com fins políticos, numa operação conjunta à grande parte da imprensa, partidos políticos e corporações. A imprensa não pode ser um partido político. O Judiciário não pode ser um partido político.

Entendam: o que está em jogo é algo muito mais importante do que quem ocupará ou não a cadeira de Presidente da República do Brasil. O que está em jogo é a própria cadeira. E a República”.

Alguns comentários: “Muito feliz em nunca ter lido seus livros. Nem lerei. Sua fala é conivente com a corrupção”, “Você é um débil mental”, “Que feio, tá ganhando quanto?”, “Você é um merda, parabéns”, “Petista perdeu a vergonha. Torcedor de político ladrão, tem q ser investigado. Quem defende bandido é pq se identifica. Tinha q ter fuzilamento no Brasil.”, “O povo está do lado do Moro e basta!”

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17/3–17h21 — Notícia do G1: “(…) O jovem foi perseguido e atingido com socos na cabeça por manifestantes. A Polícia Militar precisou usar gás de pimenta e bombas de efeito moral para dispersar a multidão. O adolescente foi escoltado por policiais de trânsito, que não têm expertise em multidão, para não ser linchado. Segundo os manifestantes, o adolescente teria gritado palavras a favor do Partido dos Trabalhadores. Porém, o adolescente afirmou que não era do PT, mas se posicionava contra o golpe e tinha o direito de se manifestar também. O adolescente agredido por manifestantes foi perseguido pela rua Pamplona e pela alameda Santos e levado pelos policiais até a garagem de um banco. Alguns manifestantes ainda tentaram invadir o local, mas foram impedidos pelos policiais. Um grupo chegou a subir nas muretas que cercam a entrada da garagem do prédio”.

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18/3–16h — Rua.

A feira do rolo (FSP — 15/04/2016)

Tenho duas amigas que moram num apartamento de segundo andar no largo do Paissandu, com balcão e vista privilegiada para a copa das árvores e para a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que domina a paisagem por trás de um ponto de ônibus recém-construído.

Enquanto comemos pudim com colherzinha e tomamos o chá da tarde, observamos o trottoir das prostitutas que tentam laçar clientes com assovios e, ao anoitecer, na esquina com a rua Capitão Salomão, a Feira do Rolo — assim, em maiúsculas, para consagrar a tradição.

Visto de cima, o Rolo é um denso círculo composto por homens erguendo tênis de corrida, camisetas, casacos, bicicletas, telefones celulares, controles remotos e outras bugigangas enquanto compradores passam entre eles em zigue-zague. É uma dança de passinhos curtos. Se você olhar direito, os compradores também têm coisas à venda. E aí rola o Rolo. Com grana ou por meio da ancestral prática do escambo.

É quase tudo roubado. De vez em quando, a PM passa e revista os que parecem mais pretos, pobres e mulatos –e também os quase brancos quase pretos de tão pobres. Quando o carro vai embora, levando um ou outro, o Rolo continua na praça. Às vezes, por motivos de sirene, muda de lugar. Essa semana rolou na esquina da praça com a São João.

Tudo isso acontece sempre ao redor da Igreja dos Homens Pretos, monumento cuja história remonta ao século 17. O primeiro templo consagrado a essa ordem foi construído em São Paulo por negros escravos e alforriados que não podiam frequentar as igrejas dos brancos. Ela é símbolo de fé e de resistência afro-brasileira.

OUTRA FEIRA

Nesse final de semana, uma outra Feira do Rolo vai bombar, com o mesmo ziguezaguear e oferta de produtos. Também organizada num círculo, este um pouco maior: o Congresso Nacional, em Brasília. Como na Feira do Rolo que vejo pela janela, o que se negocia ali é roubado. Roubado principalmente dos pretos, pobres e mulatos que frequentam o Rolo do largo do Paissandu.

Um Rolo parece puro e inocente comparado ao outro. Além da diferença de ares, banquete e impunidade no Planalto Central versus medo e penúria na calçada da praça, há outra discrepância, bastante mais evidente. Dos 513 deputados federais eleitos para a Feira do Rolo Federal em 2014, 22 se declararam pardos ou negros, apenas 4,3% do total. No mesmo ano, 53% da população brasileira se declarou parda ou negra, segundo o IBGE.

A Igreja dos Homens Pretos foi erguida há quase três séculos. Resta saber quando o Congresso dos Homens Pretos será construído na Capital Federal. Sem ele, não há esperança de paz e justiça para nenhum de nós. Sem ele, o Brasil simplesmente não é possível.

O ‘All-In’ do Lula (FSP - 08/03/2016)

Na sexta-feira passada, durante um almoço com dois amigos, conversávamos sobre o terremoto político e os desdobramentos daquela manhã quando me surpreendi falando baixo, preocupado com quem estava na mesa ao lado.

Tempos estranhos estes quando os lacerdas pululam e qualquer mesa ganha ares de conspiração. Em 2016, caso suas ponderações desafiem a instrumentalização ideológica de um lado ou de outro, discordar de narrativas hegemônicas pode acabar em porrada. Na queda de braço entre falsas dicotomias, o debate não perde apenas em inteligência, mas vira uma disputa moral vagabunda. Emburrecemos num poço de proselitismo histérico, alimentado pela imprensa e fermentado em redes sociais. Montaigne: “Obstinação e calor no debate são as maiores provas de tolice.” Eu acrescentaria outra, bem brasileira: nossa histórica falta de autocrítica.

O assunto era mais ou menos esse enquanto terminávamos de devorar o katsu domburi (lombo à milanesa cozido no shoyu) no Mugui, casa japonesa naquele predinho da rua da Glória, quando um de nós lembrou: estamos ao lado da sede do PT, é aqui na Sé. Não pensamos muito. Tomados por algum sentido histórico e o vago desejo de estar perto da ação, caminhamos até lá.

Encontramos uma multidão irritada em frente ao diretório nacional do partido. Cantavam “não vai ter golpe” e erguiam bandeiras brancas com a estrela do PT. Lula estava no prédio e em pouco tempo daria uma coletiva. A circunstância era grave: ele vinha direto de um depoimento à Polícia Federal depois de ter sido tirado de casa num camburão –a primeira vez que um ex-presidente brasileiro recebeu esse tratamento.

A portaria do prédio era uma sauna. Mais de uma centena de jornalistas se espremia à espera da liberação para subir a um auditório não muito maior que aquela sala. Entre a hora que se passou e o empurra-empurra, meus amigos me abandonaram. Primeiro subiram as câmeras de TV, depois os fotógrafos, depois os repórteres com credencial. Insisti. Com a ajuda de colegas da Folha, fui um dos últimos a entrar. Fiquei em pé, três fileiras de jornalistas e militantes erguendo microfones e celulares à minha frente. Do lado esquerdo da sala e da mesa com a bandeira do PT.

Uma faísca logo percorre o pequeno auditório de teto rebaixado e luz branca, alguém grita que o homem vai chegar. Os seguranças nos empurram um pouco mais uns contra os outros. A militância, misturada aos jornalistas, começa a cantar “Olê, olê, olê, ô, lá, Lulá, Lulá”. Para qualquer lado onde aponte o meu celular há outras câmeras ligadas, o que faz com que minha visão ganhe vários recortes em pequenos quadrinhos de LCD com a reprodução de diferentes pontos de vista, como um panóptico improvisado. As fotos e vídeos que faço estão cheios de nucas e desses fragmentos de imagem.

Como estou perto do elevador, vejo a chegada do ex-presidente. Ele tem o ar algo abatido, a testa franzida, mas oferece um sorriso pelo corredor de flashes. Parece conservar alguma humanidade no rosto, algo incomum em políticos. As pessoas hesitam em aproximar-se. O primeiro a abraçá-lo é Eduardo Suplicy, que afaga sua cabeça antes que ele chegue à mesa com os microfones.

Lula falou de improviso por meia hora em depoimento transmitido ao vivo para todo o país. Sua voz reverberou daquela sala para a história. A depender do interlocutor, foi um estadista carismático que reacendeu o partido num discurso corajoso ou um cínico Macunaíma, criminoso e tergiversante. Fato é que saiu da PF direto para a sede do partido em campanha para 2018, convocando a militância.

A condução coercitiva do ex-presidente, mais tarde alguém dirá nos rescaldos daquela tarde na rua Silveira Martins, teve algo de teste institucional e de opinião pública. A resposta das ruas ao apelo de Lula será absolutamente decisiva para seu destino: preso ou presidente. Para muitos, não parece haver outra opção. A sorte lançada no “All-In”, raro testemunhar momento tão angular na trajetória de um mito.

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